Este texto está um pouco extenso, mas foi forma que encontrei para aliviar meu coração...
Ninguém sabe ao certo de onde ele veio e o porquê estava aqui. A única certeza de todos nós, é que a presença daquele ser pequenino e indefeso era como algo bom que Deus nos havia mandado em meio a tantos transtornos acontecidos nos últimos seis meses a todos nós que residimos aqui nesta região.
Pequenino, com no máximo uns 25cm de altura , pêlo totalmente negro e olhos amorosos, ele conquistou a todos com sua maneira graciosa e inusitada de se portar. Se a rua estava sozinha, sem a devida segurança, não o podíamos ver, mas quando a viatura da polícia se aproximava, ele aparecia correndo, do nada, assim como a fênix que ressurge das cinzas. Ele parecia sorrir ao ver o colorido das luzes encima do carro e então se deitava junto as rodas. Era só isso que ele queria.
Não tinha nome e então o chamávamos de “cachorrinho da polícia”. Estava sempre lá com seus amigos policiais. Com o tempo, acho que por conta da companhia deles, ficou mais valente e corria atrás de bicicletas e motos que se aproximavam muito. Aquele ser diminuto era capaz de trazer mais leveza ao rosto dos militares, que se acostumaram tanto àquela figurinha, que já traziam lanche, água e também passaram a agir carinhosamente com ele. O chamavam de mascote! Era amigo de todos que fossem do bem. Muitas vezes me abaixei na esquina e estendi a mão e ele veio prontamente colocar sua cabeça em meus joelhos a espera de um carinho.Acho que os animais percebem o nosso interior. Talvez eu esteja errada. Não sei, mas é a impressão que eles me passam. Um dia, vi seus olhinhos lacrimejando, um pouco inflamados e parei para verificar. Podia ser cinomose, doença contagiosa e provocada por vírus ou pneumonia. Fiquei preocupada. Neste dia o policial me contou que todos também estavam receosos e que já estavam até considerando a hipótese de adotá-lo e levá-lo para a sede da Companhia como mascote. Cheguei a falar dele lá na Ong, mas com a correria dos dias, e desta vida que parece nos engolir, acabei não o levando para uma consulta.
Este é Pilau. Estava nas ruas abandonado e hoje recebe muito carinho porque foi adotado
Dias depois, fui fazer uma experiência de trabalho no Grupo de Dança Primeiro Ato, assim como contei na última postagem, que, aliás, não teve nada haver comigo e graças a Deus foi breve, e com isso fiquei uns quinze dias fora e ocupadíssima. Quando retornei, fui ao comércio fazer umas compras e percebi a rua vazia. Sim, faltava algo. Olhei para a viatura estacionada, para os policiais e não o vi por perto. Comentei com o Joel, alguns vizinhos também vieram falar comigo e senti meu coração apertado. Mas a minha vida também estava apertada e cheia de coisas para colocar em ordem. Não parei naquele dia...
Foi na quinta-feira passada que tudo aconteceu em meu coração. Eu fui para o ponto de ônibus e antes resolvi parar e conversar com os militares. Perguntei a respeito do cãozinho e tive a resposta: Por conta dele ser um amigo e mascote da polícia, por ser amigos dos moradores e despertar em nós alegria, porque que ele era incomum, porque ele era frágil e indefeso, ele foi atraído para dentro da invasão aqui em frente e morto a chutes e a pauladas. A policial me contou com fúria nos olhos. Disse-me que ele havia pagado com a vida por que era uma forma de retaliação à polícia. E penso que a todos nós...
Então, tudo aconteceu em meu coração. Senti dor, revolta, culpa e até ódio! Não posso mentir, pois Deus viu todas as minhas reações. Quando pensei na dor que ele sentiu, na maldade que cometeram, não consegui me controlar. Era apenas um animalzinho carente que não fazia mal a ninguém.
De todos os fatos que aconteceram até agora, desde que esse maldito MST chegou aqui, falta de paz, roubos, assassinatos, baixarias diárias, nada doeu tanto em mim como este fato. A dor que eu senti foi insuportável. Senti muito nojo daquelas pessoas, aliás, é o único sentimento que tenho para com os mesmos. Todos os dias eles fazem questão de mostrar o lado negro de suas almas. Isso os domina. A maldade, o desrespeito, o mau caratismo, a desordem, a desonestidade e tantos outros “atributos”, eu poderia ficar aqui escrevendo linhas e linhas e não conseguiria descrever suas mentes malignas com exatidão...
Três amiguinhos dormem sobre um edredom quentinho. A do meio se recupera bem de cinomose. O filhote , à direita, foi achado encharcado de óleo queimado, desnutrido e hoje está curado. À esquerda, um amigo que também se convalece.
Adotados, receberam uma nova chance de viver!
Os policias me contaram que jogaram o corpinho dentro de uma sacola, perto da viatura. Mas começou a cheirar e então alguém levou embora. Quando me disse aquilo, eu me lembrei que estava sentindo algo estranho no ar. Um cheiro forte vindo do lote ao lado. Fui até lá e encontrei uma sacola e nela percebi que tinha um animal morto. Tomei coragem e com dificuldade abri. Vi um corpo pequeno, já em decomposição avançada. Os pêlos pretos e um apelo de descanso. Sabe, não sei se era ele. Não dava para ter certeza. Voltei em casa para buscar uma ferramenta a fim de fazer uma cova. Lembrei então de um livro que li há muitos anos quando estava no colégio. Contava a história de vários jovens e em especial de uma garota que dizia querer ser enterrada debaixo de um ipê amarelo e com um vestido vermelho.
Vi o ipê junto ao meu muro e então lá fiz uma pequena cova para aquele corpinho.Depois, finquei uma cruz com uma flor, como um pedido de desculpas pela culpa de não tê-lo levado para a ONG, e amarrei uma fita lilás em forma de laço. O lilás é uma cor que está ligada a fantasia, ao mistério e também está ligada a paz, a serenidade, mas também traz reflexão e tristeza. Tudo que para mim, aquele cãozinho passou a representar. Mas o ipê esse ano não quer florir. Na ultima chuva, em fúria, deixou cair todos os seus botões ainda fechados... Mas quero, que assim como no livro que li quando era adolescente, que suas flores amarelas enfeitem o chão onde descansa um amigo. Como disse, não tenho muita certeza se era ele, mas fiz aquilo por meu amiguinho e por todos os doces animais que têm sido tão maltrados neste mundo.
Não tenho uma foto dele. Não tirei. Não pensei que fosse perdê-lo. Me despedi com a certeza que se houver um céu para os animaizinhos, ele estará lá agora, brincando e correndo, talvez, embaixo de um lindo ipê que florescerá pela eternidade...
Vale a pena ler....
"...Quando florescem os ipês' é a pintura do anseio, das incertezas, do medo, do sofrimento e da esperança de quatro adolescentes que vivem em uma cidade pequena. Tal qual o ipê, que floresce uma vez por ano, no final da adolescência cada um tem seu florescimento e a necessidade da opção - ficar ou mudar para a cidade grande."